domingo, 19 de novembro de 2023

PENHORA SOBRE FATURAMENTO OU SOBRE O LUCRO LÍQUIDO?


 

Boanerges Cezário* e Helton Matos**

 

 

A fase de execução no processo civil, seja de cumprimento de sentença, seja de execução de título extrajudicial, é um momento onde o estresse de todos os envolvidos na trilha processual faz aumentar a temperatura, tendo em vista as dificuldades econômicas eventualmente enfrentadas por uma ou ambas as partes, ao mesmo tempo em que é chegada a hora da efetivação propriamente dita do direito do credor.

Há também aquela situação onde o exequente começa a vislumbrar sinais de insolvência aparente no quadro patrimonial do executado, principalmente quando diversos expedientes já foram usados, tais como a busca de dinheiro em conta bancária, móveis, imóveis dentre outros e não encontraram respostas à satisfação creditícia ou patrimonial esperada.

O artigo 866 do CPC busca uma saída ao final do túnel quando explana:

Se o executado não tiver outros bens penhoráveis ou se, tendo-os, esses forem de difícil alienação ou insuficientes para saldar o crédito executado, o juiz poderá ordenar a penhora de percentual de faturamento da empresa (grifo nosso).¹

 

Aí começa uma questão quando diante de um problema jurídico aparece outro, verdadeiro quiproquó jurídico/contábil. Qual seria? Onde se torna impraticável essa vontade do legislador, que, inserindo esse artifício no intuito de ajudar complicou o plano executivo em si?

A princípio, é bom observar o conceito em si de faturamento, que em suma é:

 

(...) o valor total das vendas de produtos ou serviços de uma empresa em um período específico, não considerando os custos. (https://www.portaldaindustria.com.br/industria-de-a-z/faturamento/#:~:text=Faturamento%20%C3%A9%20o%20valor%20total,foi%20de%20R%24%2050%20mil.) ²

 

 

É também chamado de receita bruta, mas o que importa saber sobre tal conceito é que compreende o valor total da venda de mercadorias, produtos ou serviços efetivados pela empresa.

Percebam que o valor do faturamento engloba os tributos incidentes sobre as vendas, abatimentos e vendas canceladas.

 

Paulsen (2016)³  nos lembra que a CFRB/1988 trazia  na redação original do seu art. 195, I, apenas a expressão faturamento, sendo certo que a EC 20/1998 ao acrescentar a alínea b, incluiu receita ou faturamento, sendo aquela mais abrangente.

 

Faz-se necessário esse olhar no campo tributário pois o legislador processual se valeu de uma noção contábil, já trazida para o mundo jurídico, qual seja o faturamento, assim como a receita, para de posse de suas noções, entendermos suas implicações no campo da dita penhora sobre o faturamento.

Trocando em miúdos, por exemplo, se a penhora for originária da União, estaria ela se apropriando de parcelas de ICMS, ISS, PIS, COFIS, os dois primeiros pertencentes ao Estado e Município respectivamente, os dois últimos já lhe pertencem, pois são tributos recolhidos à União.

Atentemos que o problema surge aí, pois se a penhora foi sobre o faturamento, atingiu valores que não estão livres, ou seja, pertencem a outros órgãos fazendários e são justamente esses valores que ensejariam a intimação dos entes respectivos para manifestação.

 

Mesmo raciocínio se a parte exequente for pessoa de direito privado, que, em tese, estaria se apropriando sobre valores de impostos a recolher...

Então contabilmente como a entidade irá explicar ao fisco que a penhora originada do art. 866 do CPC se apropriou de valores pertencentes aos fiscos  federal,  estadual e municipal?

Atenten-se, como falamos acima, se a parte exequente for Fazenda Pública ela estaria se apropriando de valores que lhes pertencem também, já que na soma da receita bruta total (faturamento) há uma parte de ICMS, ISS, PIS e COFINS, que já lhes pertencem.

 

Borinelli e Pimentel 4  observam que ¨(...) o valor da receita bruta total não é de exclusividade da organização, uma vez que parte dele é pertencente ao governo(...)”

 

Abre-se outra pergunta: como os fiscos receberiam esses valores no caso de penhora não requerida por eles? Penso que essa partilha só seria realmente concretizada se a intimação dos entes respectivos fosse efetivada.

 

A intimação para tal finalidade se mostra imprescindível dado o interesse público a ser resguardado. Do ponto de vista processual, a ausência de intimação, não permitindo a partilha  supracitada, abre margem para discussão acerca de nulidade da constrição judicial em comento por falta de intimação dos entes detentores da competência tributária exemplificada.

 

Vejamos numa Demonstração do Resultado do Exercício (DRE) hipotética, que segue adiante, como ficaria a penhora formatada pelo art. 866 do CPC e como e onde realmente ela deveria incidir:

 

DRE

 

RECEITA OPERACIONAL BRUTA

Vendas de Produtos

Vendas de Mercadorias

Prestação de Serviços

(-) DEDUÇÕES DA RECEITA BRUTA

Devoluções de Venda

Abatimentos

Impostos e Contribuições Incidentes sobre Vendas

= RECEITA OPERACIONAL LÍQUIDA

(-) CUSTOS DAS VENDAS

Custo dos Produtos Vendidos

Custo das Mercadorias

Custo dos Serviços Prestados

= RESULTADO OPERACIONAL BRUTO

(-) DESPESAS OPERACIONAIS

- Despesas com Vendas

- Despesas Administrativas

(-) DESPESAS FINANCEIRAS LÍQUIDAS

(-) Receitas Financeiras

(-) Variações Monetárias e Cambiais Ativas

OUTRAS RECEITAS E DESPESAS

(-) Custo da Venda de Bens e Direitos do Ativo Não Circulante

= RESULTADO OPERACIONAL ANTES DO IR E CSLL

(-) PROVISÃO PARA IR E CSLL

= LUCRO LÍQUIDO ANTES DAS PARTICIPAÇÕES

(-) PRO LABORE

(=) RESULTADO LÍQUIDO DO EXERCÍCIO

 

 

Em síntese, para a penhora indicada no art. 866 do CPC ser justamente realizada, sem o imbróglio apontado, sua incidência só faria sentido se fosse incidente percentual sobre o lucro líquido, valor que realmente pertence à empresa e a palavra não seria FATURAMENTO e sim PENHORA SOBRE O LUCRO LÍQUIDO. É isso que dá, quando utilizamos termos inapropriados nas leis e demais atos normativos, sem a precisão jurídica necessária, ensejando dificuldades hermenêuticas na praxis juridica

E aí, é de se pensar, qual a soma de valores existentes no mundo jurídico-contábil penhorados na forma do art. 866/CPC, quando deveriam ter sido penhorados sobre o lucro líquido?

 

Que é inequívoca a distinção de ambos os conceitos , não restam dúvidas.

 

Enfim, quisemos  a partir de uma breve e singela passagem pelas noções de faturamento e lucro líquido, demonstrar que a partir do texto processual/constitucional, no âmbito da competência tributária,  mais cautelosa se afigura a constrição judicial de bens do devedor, que deverá atender simultaneamente aos princípios da patrimonialidade, da menor onerosidade e da continuidade do empreendimento.

 

Como você vislumbra isso, nobre leitor?

 

 

Oficial de Justiça/Contabilista*

Oficial de Justiça/Bel em Direito**

 


1 BRASIL, Código de Processo Civil

 

 

2 O que é faturamento? Portal da Indústria <https://www.portaldaindustria.com.br/industria-de-a-z/faturamento/#:~:text=Faturamento%20%C3%A9%20o%20valor%20total,foi%20de%20R%24%2050%20mil.> Acesso em: 10 nov. 2023

3 PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à Luz da Jurisprudência. 16. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.

 

4 BORINELLI, Márcio Luiz; PIMENTEL, Renê Coppe: Contabilidade para gestores, analistas e outros profissionais, 2ª ed. São Paulo: Editora Atlas Ltda, 2017

 

 

5 BRASIL, Constituição Federal


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